19 dezembro 2008

Sorriso plasticamente ensaiado



Não há pior dia do que aquele em que não percebemos porquê. Aquele em que tudo pára, em que a realidade parece diferente, em que a nota que toca no piano é sempre a mesma, ao mesmo ritmo, insistentemente e repetidamente enervante. A nota que nos vai desgastando, aquele desgaste que não é recuperável, aquele que fica como a cicatriz da nossa pior queda.

...

É de maneira fria que dá para passar por isto. Hoje olho lá para fora e está a chover. Esperei pela noite para escrever. É um tema escuro e obscuro. Mas é real. E revoltante. E é ainda mais revoltante não ter com quem me revoltar. Não saber a quem pedir para devolver a vida a quem de direito. Revolta-me porque me revolta. Revolta-me. É, a vida continua. (Bem fácil de dizer). Queria ter tempo para pensar nas férias que não tive. Queria ter tempo para chorar a morte que não me secou as lágrimas (ainda). Queria ter tempo.

Sei de cor aquela viagem. “Próxima paragem: IPO”. As minhas pernas levavam-me para onde não queria ir. Chegava, sentava-me, olhava. E passava as horas só a ver se ela respirava (já não tinha força para não dormir). O bebé passou a ser ela (e não eu). Os gemidos eram inquietantes. Em nada se assemelhavam à nota do piano que tocou insistentemente dia 30 de Outubro. E não era o piano que queria ouvir.

As veias frágeis deixavam transparecer o negro massacrado da doença que chegou sem avisar. Sem pedir licença, sem bater à porta. O senhor do quarto ao lado já não o vi hoje (ouço os sinos da igreja). O marido daquela que tem menos que quase todas as mulheres fuma um cigarro atrás do outro. As visitas vão aparecendo e vou subindo e descendo o elevador ... (e todos os outros que conhecem de cor a paisagem cinzenta daqueles quartos). A máquina de café e a sala de espera. Já me sinto da casa. Já me conhecem. São muitas horas. O turno chega ao fim quando a minha mãe corre do trabalho. Traz sacos carregados dos últimos prazeres da vida de quem a trouxe ao mundo. Reparo que as olheiras dela estão mais carregadas. Os olhos caem tristes com réstias de esperança. Não devia ir embora, penso. As visitas chegam atropelando-se no tempo daquele que não é o meu turno. Vou-me embora. Amanhã chego e dou mecanicamente o cartão para receber o número do quarto que já não pronuncio. (Conhecem de cor o meu sorriso ensaiado de quem plasticamente faz que não sofre para dar alegria aos olhos azuis responsáveis pelo meu olhar, também ele azul, demasiado transparente). Ela agora já nem os meus olhos vê. Vou-me embora.

Agora, em casa, ela ganha uma esperança que tenta esconder. A doença é demasiado galopante. E vejo nas minhas memórias as crianças de máscara, os tubos anti anatómicos a entrar pelo corpo queimado por químicos falsos e fortes (e fracos). Hoje já não quer luz, já não quer som, já não quer cheiros. Hoje já não sabe quem eu sou. Desvio o olhar para fingir que não vejo a morte a chegar e que amanhã vai estar tudo bem. Já não sinto o cheiro fresco a gardénias. Já não tenho o bolo de chocolate domingueiro (mais doce que qualquer bolo).

Balanço anual: crescer à pressa, fingir que nada aconteceu. Continua a chover lá fora, o tempo passou ao mesmo ritmo, a escuridão é exactamente a mesma. O piano continua a tocar num concerto particular. A minha mãe continua de preto. Eu mantenho o sorriso ensaiado de quem plasticamente faz que não sofre para dar alegria agora aos olhos castanhos ainda mais tristes de quem me trouxe ao mundo. Vou-me embora.

1 comentário:

Anónimo disse...

um beijo bebé*